quarta-feira, 24 de abril de 2013

Tempos de içá

Ruth Guimarães

Em uma de minhas crônicas, chamada comidas e preconceitos, eu disse que quem quisesse estudar os preconceitos culinários da família brasileira teria assunto para um volume. Pois o que se deixa de comer, ou beber, por motivos que, quando mais não seja, são pitorescos, forma legião. Galinha que tenha os pés pretos, por exemplo, legorne porque é sem sangue, ovos brancos, que não tem sustância, carneiro, porque chora pra morrer, cabrito, porque é “aspre”, chá, não estou doente, verdura, não sou coelho. Nem peixe curimbatá, porque come terra, nem bezerro nonato, nem vísceras, nada. Comida de brasileiro é leitoa assada, frango de leite, costeleta, lombo de porco, arroz com feijão.

E no entanto, É chamada içá, e também tanajura, a formiga saúva, fêmea, quando pejada de ovos. Usa as asas, de que então é dotada, para se acasalar, no voo. Trata-se da Atta Sexdens, a respeito da qual se gas­tou um rio de tinta.

No final de outubro, em dia calorento de sol, depois de uma tempestade, é certo que dos formigueiros partem centenas de milhares de içás e mais os seus companheiros, cujo nome é bitu, ou içá-bitu, e realizam, nesse dia esplendoroso, o voo nupcial. Esse é dia de co­lheita de formiga. No interior, nas roças, em terras vermelhas, à boca dos formigueiros, posta-se a meninada, ou corre atrás dos insetos que estão em vias de pousar no chão, tonteando-as com ramos bem enfolha­dos. Não se trata de esporte, embora dia de içá seja dia de festa. Colhe-se o inseto para comê-lo.

Conta Cornélio Pires que o paulistano era apelidado pelo san­tista de comedor de formiga, mas esse remoque vem dos dias de antanho.

A içá é consumida torrada, assada, moqueada, com farinha, com molho apimentado. Era tão comum, na era colonial, que foi oferecido ao Conde de Assumar, quando parou para refeição entre Jacareí e Caçapava, numa fazenda. O conde recusou-se a comer tal manjar, que considerou muito esquisito.

O livro de receitas "O Cozinheiro Nacional", da Livraria Gar­nier, diz que içá torrada tem gosto de camarão. Carlos Matos, in "In­setos no Folclore", de Karol Lenko e Nelson Papavero, diz que içá tor­rada cheira a carrapato. A içá é não só comida, mas também bebida. Ma­cerada na pinga, dá-lhe um gosto apreciado por muitos. De mel, dizem. Também é remédio (a içá com pinga), depurativo e fortificante.

Fortificante deve ser, e dos bons, pois se trata de ovos de formiga, caviar caipira, talvez com o mesmo valor nutritivo do caviar da ova de esturjão.

Monteiro Lobato gostava de içá.

Que se trata de culinária indígena, dá-nos testemunho An­chieta. Afirmava que os índios assavam formigas em vasilhas de barro. Essas formigas cortadeiras.

Nos mercados do Vale do Paraíba, até mais ou menos duas déca­das, vendiam-se pratos de içá torrada, misturada a farinha de man­dioca. O acepipe vinha das roças, em sacos brancos, muito bem lavados e tinha grande aceitação.

Pois é... comida de brasileiro é leitoa assada, frango de leite, costeleta, lombo de porco, arroz com feijão. E formiga!

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