Ruth
Guimarães
Tantos
fizeram o diagnóstico da situação do negro em nosso meio, que não vou por este
caminho. Quero dar apenas a minha visão do posicionamento de tantos que, como
eu, são vitimas e cúmplices de um status quo. E de alguns que, quando escapam
da armadilha, são ainda mais cúmplices das forças de opressão que antes, eis
que a fortuna redobra o medo de perder. Talvez seja necessário admitir que não
se trata propriamente da situação do negro, mas do pobre, na acepção mais
completa do termo. Isto é, o negro na situação de desvalido.
Quando
li o meu nome sob o título O NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA, tive as minhas
dúvidas sobre o significado. Seria a literatura do, ou sobre o negro? Seria o
negro personagem ou autor? Para falar como professora de Língua Portuguesa, que
sou: o negro seria o sujeito ou objeto?
Sobre
o negro, temos os inolvidáveis documentários de Gilberto Freire, Nina
Rodrigues, Edson Carneiro, Artur Ramos e muitos outros, como Clóvis Moura.
Etnólogos, sociólogos... Não é a minha seara.
Meu
romance ÁGUA FUNDA saiu nos anos 40. Eu sou da geração de 45. Surgi pela mão de
Edgard Cavalheiro, Santo Edgard, para os amigos.
Acontece
que eu era do grupo da Baruel, onde pontificava o velho Amadeu de Queirós, a
quem fui enviada para umas consultas folclóricas, por Mário de Andrade. Velho
Amadeu já nessa ocasião, tinha muitas queixas dos moços. Não fazem nada, não
levam nada a sério. Eu tenho 77 anos e escrevo duas horas por dia.
Eu
fui escutando aquela lenga-lenga. Não disse nada. Mineiro trabalha em silêncio.
Saí a alguns dias, apareci na Drogaria com os originais de Água Funda. Então,
ele me mandou para o Edgard Cavalheiro e a Globo editou meu 1º livro.
Primeiro,
vou esclarecer a história de mineira.
Meus pais moravam em Minas, no sul montanhoso, e minha mãe, grávida de 7
meses, foi para Cachoeira Paulista, para casa dos meus avos, onde nasci. Quando
eu falava que era paulista, a piadinha de minha avó era: não é porque a gata dá
cria dentro do forno que o gatinho sai biscoito.
Pois
foi na Drogaria Baruel que conheci Fernando Góis, jornalista de muitos méritos,
mulato. Militava em inúmeras associações de negros e levou a peito me
introduzir nesse clima de lutas pelas reivindicações, vamos dizer raciais. Por
meio dele, conheci agremiações, clubes, sociedades, o gheto negro do Baixo
Piques, as rodas de prosa da Rua Direita, com seus domingos negros, famílias de
negros, as gafieiras, o Bixiga dos cortiços, tudo. Dizia ele que havia duas
espécies de negros omissos: aqueles que faziam zumbaias para os brancos e
viviam em clientela com eles, e se faziam de alegres, de agradáveis, de
palhaços, para obterem favores, o favor de serem tolerados; e aqueles que por
toda a parte ficam muito quietos e muito discretos, para ninguém perceber, ou
para ninguém que eles são pretos. Como eu não era nenhuma dessas espécies, e
não cabia em nenhuma dessas classificações, a alternativa era a luta. Agora vem
a indefinição. Lutar para obter o que? “Igualdade”, entre aspas, diante da lei
nós temos.
Aos
22 anos, que era quantos anos eu tinha, ninguém me pôs claramente os objetivos.
Liberdade
não é apenas uma palavra, para mim. Liberdade é rumo, é programa, é meta.
Existe pouca gente livre no mundo.
Eu
sou livre.
Sou
livre, porque conquistei, com unhas e dentes, cada centímetro do meu espaço.
Sou
livre, porque não entendo de lamurias nem de queixumes.
Sou
livre, porque obedeço apenas à voz da minha consciência.
E
sou livre também porque não ligo para dinheiro e não me importa a glória.
Nessa
questão do negro, como sou meio-a-meio, não vejo sentido em funcionar só com a
metade, seja a branca, seja a preta. Não
me atenho à complacência do branco e não aceito a recriminação do negro. Tenho
o direito de fazer as minhas opções por mim.
Quero
ver claro nesse assunto. Que é que nós queremos? Ser absorvidos por uma
civilização branca e tolerados, como os estrangeiros que já fomos, tendo que
nos conformar com o que nos queira oferecer o dono da bola? O dono da terra? O
dono do mundo?
Ou
o que?
Quem
nos deu donos? Por que aceitamos os donos?
Não
me parece que no Brasil haja um problema especifico de raça. A coisa é muito
superficial, muito epidérmica.
O
que há, realmente, é um problema de classe, centrado no negro por muitas razões
políticas e econômicas. E o negro não saiu e não sai da senzala, por falta de
conhecimento.
Vejam
que, quando se encontra um negro com educação superior, foi adotado por uma
família de brancos, teve o respaldo dos brancos. E a situação de clientela
continua. Acabamos perdidos numa sociedade com a qual nada temos que ver. Para
o artista negro não há peças. Quem as escreve? Onde estão os escritores negros?
Estão em emorião, na periferia, nos cortiços, nas favelas. De onde surgirão
quando houver um direcionamento, numa conscientização geral, por parte da
sofrida população negra. Não é a pobreza somente o que a segura. É o
condicionamento da senzala.
Agora
vem o questionamento mais importante: o que vim fazer aqui? Por que vim? À Nestlé e ao mundo.
Negra
eu sou, o que não é nenhuma originalidade neste país. Negra e escritora, o que
já constitui um modo singular de ser, dadas as circunstâncias. Também sou
escritora regional, e, como caipira, a única.
Negra,
escritora, mulher e caipira. Eis aí as minhas credenciais!
Também
sou professora e a minha cátedra é o meu púlpito. Não tenho alunos brancos e
pretos. Tenho alunos. Ensino-os, não somente a colocarem bem os pronomes ou a
regência dos verbos. Ensino-os a manejarem a língua e a amá-la, a servirem-se dela.
A darem forma a seus pensamentos. Ensino-lhes o orgulho de serem homens e
mulheres. De serem alguém no mundo. Ensino-lhes o que uma criatura pode obter
de si mesma. Não com essas palavras, mas com a grande voz profunda dos mestres
de literatura. E os meus alunos ficam sabendo o que eu espero deles.
E
eu sou escritora. A minha máquina de escrever é uma arma.
O
que venho, pois, fazer aqui?
Eu
venho aos negros da minha terra, meus irmãos, pregar o orgulho.
Os
personagens negros dos meus contos negros, alguns publicados por aí, alguns
inéditos, são negros feitos de pedra e aço.
Eu
disse que não entendo de queixumes e lamurias.
Há
solução para a população negra desta terra. Temos que aprender. Lugar de negro
não é no botequim. É na escola. Não é na cozinha. É na escola. Não é na
macumba. É na escola. Não é no sambódromo, como espetáculo. É na escola.
Repetindo
e parafraseando Brecht: se o negro tem fome, se está vezado, humilhado,
ofendido, agarre o livro. É uma arma.
Pendurado
nos ônibus cheios, nos andaimes das construções, roto, ferido, fracassado,
agarre o livro. É uma arma.
Eu
venho aos negros pregar o orgulho: de sua pele de bronze ou ébano. Do seu
trabalho, da sua inteligência, da sua bondade, de sua alegria, do seu samba, de
seu lugar no mundo.
Sem
escola e sem orgulho, o que nos resta? Porteiro, contínuo cama, cozinha, fundo
de quintal e porta dos fundos. Resta apenas irmos para onde nos empurram.
Qualquer
trabalho é honroso, por escolha, não por força.
Nosso
lugar é em todos os lugares.
Nós
estamos aqui. Nós estamos aqui para ficar. Queiram ou não queiram, nós somos o
povo brasileiro. E já que estamos aqui, já que nos trouxeram, só o que falta é
sermos. Era só o que faltava, sermos estrangeiros em nossa própria terra.
Devo
dizer que nunca minha pele marron foi obstáculo ou barreira. Nesta terra
abençoada, o talento, a vontade, a competência, não tem cor. Lembro-me de dois
elogios, os que mais me tocaram, e vou relatar:
Contou-me
Marcos Rey que Hernani Donato, irmão dele, estava lendo um livro meu e, às
tantas, falou, com força: “Ô nega desgraçada prá escrever!”.
O
outro episódio se deu com Ernani Silva Bruno, que foi meu Diretor, no Palácio
da Cultura, nos Campos Elíseos.
Parei
na porta do gabinete, e, quando ia pedir licença, ele gritou jovial, lá de
dentro:
-
Entra, Irene!
Pois
vim aos negros pregar o orgulho:
Não
queremos bondade, nem tolerância, nem paternalismo. Não queremos nem que falem
por nós. Apenas escutem.
Queremos
igualdade, não concedida, mas conquistada.
Esta
terra é nossa.
Eu
vim hoje, aos negros que me ouvem, pregar o orgulho.
Negra!
Eu sou. Com muita honra!
E pensar que ela disse isso há 36 anos e ainda soa atual. Tristes tempos ainda.
ResponderExcluirSENSACIONAL!
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