quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A Missão de Ruth

Coube-me a incumbência de apresentar a autora do prefácio deste livro. É minha mãe, uma mulher simples na origem e no trato. Mas um fenômeno na clarividência, na sagacidade, no entendimento do outro. Criada em fazenda, filha do administrador, preferiu sempre a companhia dos mais pobres, dos desvalidos, dos esquecidos. Participou de sua miséria e de seus mistérios.

Órfã muito cedo, foi morar na capital de São Paulo aos 17 anos, levando a reboque quatro irmãos menores, que educou, preparou para o mundo e emancipou. Às custas de extraordinária perseverança e sacrifício, cursou Letras Clássicas na USP e entregou-se ao ofício de escrever. Publicou o romance “Água Funda”, aclamado pela crítica, em 1946. Foi aluna de Mário de Andrade. Privou da amizade de grandes nomes da literatura, como Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, Osman Lins, Marcos Rey e muitos outros.

Casou-se com o primo José, formando a mais terna parceria que tive a honra de conhecer e que é modelo para a minha vida.

Mas Ruth, nascida da tragédia, enfrentaria outras tantas. A filha mais velha, de inteligência brilhante e alma de artista, foi vítima de esquizofrenia; morreu aos 20 anos. O segundo filho, Rubem, em depressão profunda, suicidou-se aos 20, um ano depois da morte da irmã. O terceiro filho, Antonio José, apresentava sintomas que na época os médicos não souberam identificar – deram diagnóstico de retardo mental, e ele percorreu como aluno o Instituto Pestallozzi e a Apae. Não lhe trouxeram benefício algum. Padeceu de nefrose e morreu, em meio a grande sofrimento, com 19 anos. Morria um ano depois de Rubem.

Eu sou o quarto filho. Minha mãe costuma me brindar com a antonomásia de “o quarto filho muito amado, em quem deposito todas as minhas esperanças”. Mas ela sabe que o presenteado sou eu, por ter tido a felicidade de ser filho dela.

Depois de mim vieram outros: Judá, com a mesma sintomatologia de Antonio José; depois Marcos, Rovana, esta também com traços do que os médicos chamaram de retardo, Olavo e Júnia.

Meus pais viveram em sobressalto. Antonio José, Judá e Rovana foram desenganados pelos médicos. Os augúrios eram de que morreriam antes dos sete anos, previsão prorrogada para a idade de doze, depois de quinze, depois de vinte.

Progressivamente, foram apresentando surdez, retinose pigmentar e disfunção renal. E eram praticamente mudos, em decorrência da surdez.

Quando Judá contava vinte e oito e Rovana vinte e cinco, usavam aparelhos de surdez e óculos especiais, mas pioravam, devagar e inexoravelmente. Por essa época descobrimos, com a ajuda do Centro de Genética da USP, que ambos eram portadores da Síndrome de Alport. Pesquisas médicas indicam que a síndrome de Alport é causada por uma mutação em um gene do colágeno. É um distúrbio muito semelhante à nefrite hereditária e geralmente está associada à presença de surdez nervosa e anomalias oculares congênitas, como de fato observou-se nos meus três irmãos. É uma ocorrência considerada rara, numa razão estatística de duas pessoas acometidas para cada 10.000. Rovana, de certo modo, teve relativa sorte, comparando-se com os irmãos, porque o distúrbio costuma ser brando em mulheres.

Começava nova maratona de Ruth e José. Deixarei que ela mesma conte, no prefácio deste livro, o que pensava.

Antes, preciso comentar que meus pais estabeleceram um tratamento caseiro infalível para os filhos, todos eles. É a terapia do passeio. Não havia mau humor nem manha que resistisse à sempre nova frase do “vamos passear?” Oupaquiá, como os três portadores da síndrome diziam, em sua pronúncia irregular. Talvez que, aos seus ouvidos pobres, a prolação da palavra estivesse correta. Podia ser que a palavra fosse bem formulada, na cabeça deles, e, por causa da sua articulação torta, o resultado fosse diverso. Nós outros é que não sabíamos, quem sabe?, ouvir direito o que eles falavam. Por exemplo, pronunciavam banena e não banana, patata e não batata. A má pronúncia podia ser fruto de uma impossibilidade física. Curiosamente, a pronúncia defeituosa resultou em quase a mesma fonética nos três irmãos malfalantes. Talvez tenham aprendido uns com os outros os segredos para uma comunicação suficiente e criaram assim tipicidades. Ou seria traço da síndrome comum aos três?

Apenas preciso completar que, a despeito de toda a atenção que os filhos demandavam, Ruth conseguiu publicar mais de 50 livros, de contos, pesquisas folclóricas, traduções do francês e do latim, e peças de teatro. Foi professora de língua portuguesa durante 35 anos em colégios estaduais. E ainda conseguiu tempo de fazer o curso de Dramaturgia e Crítica Alfredo Mesquita. De produzir reportagens para a Revista Quatro Rodas e Revista do Globo. E escrever, por anos e anos, crônicas nos jornais Folha de S. Paulo e ValeParaibano. E de integrar o Conselho Estadual de Cultura, ao lado de Inezita Barroso. E de promover exposições de manifestações folclóricas. Aos 88 anos, assumiu a Secretaria de Cultura de sua cidade natal, Cachoeira Paulista, para onde retornou, depois de aposentada; cumpriu a função por dois mandatos.

Há cinco anos é imortal da Academia Paulista de Letras, e não falta às reuniões de quinta-feira, seu compromisso semanal que faz questão de honrar. Mesmo com as dificuldades de locomoção que os 93 anos de idade lhe impõem.

Perdeu Judá em 2010, de falência renal. Perdeu Rovana em 2011, de falência renal. Não perdeu, porém, a coragem e a força. Levou até o fim a missão de cuidar de todos nós, especialmente dos portadores da Síndrome de Alport. Que mais ela haverá de enfrentar, ninguém sabe. Se depender de nós, os filhos que restamos, colherá amor. Às braçadas. 

Joaquim Maria Botelho
Filho e jornalista

3 comentários:

  1. Lindo texto e história de vida notável... Beijo as mãos de D Ruth Guimarães Botelho e parabenizo a delicadeza da escrita de Joaquim Maria Botelho.

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  2. Estou profundamente emocionado e mais apaixonado por essa escritora.

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